O REAL DA EXPERIÊNCIA ANALÍTICA

Doris Rinaldi*

Inicio com um fragmento de análise. Beatriz chega à sessão e deita-se, como faz costumeiramente, para desfiar relatos de seu cotidiano, na tentativa de “fugir de seus pensamentos”. Começa dizendo que não tem nada para contar, mas, subitamente, de forma pouco habitual, lembra-se de um sonho – um pesadelo – que teve na noite anterior. Algo se impôs a ela, do qual não pôde fugir. O que a surpreende neste sonho é que ele lhe parece extremamente real. Mesmo após despertar, permanece esta sensação, que se acentua à medida que fala dele. Que estranha realidade é essa do sonho que transborda para a vigília, como algo real?

Freud, ao longo de sua obra, deteve-se várias vezes sobre a sensação de realidade provocada pelos sonhos, como o fez na Interpretação dos Sonhos e na análise do Homem dos Lobos. De início supôs que tais sonhos reproduziam na totalidade ou em parte acontecimentos de fato ocorridos. Insistia que o sentimento de realidade depois do despertar era justificado, pois alguma coisa ocorreu que foi repetida no sonho. Logo em seguida, contudo, nos diz que, na verdade, esta sensação de realidade refere-se a pensamentos oníricos latentes, ou seja, está ligada à realidade psíquica, reino da fantasia. Ainda que no caso do Homem dos Lobos procure estabelecer uma ligação entre a convicção de realidade provocada pelo sonho e a suposta existência factual da cena primária, é neste mesmo texto que reconhece que as cenas primitivas da infância não são simples lembranças, mas resultam de uma construção no decorrer do trabalho de análise. Sua emergência nos sonhos e a convicção de realidade que provocam, fazem do sonho um modo privilegiado de elaboração em análise, em que a realidade psíquica governada pela fantasia mostra seu valor de verdade para o sujeito.

Dessas considerações podemos concluir que no sonho referido acima, e na sensação que ele provoca, o que está em jogo é a realidade psíquica.

Tomemos agora um sonho clássico, apresentado por Freud no início do Capítulo sobre “A psicologia dos processos oníricos” no livro da Interpretação dos Sonhos. Não se trata de um sonho relatado em um processo de análise, mas Freud dá a ele grande valor, nomeando-o como sonho modelo. Trata-se de um pai que adormeceu no quarto contíguo àquele onde o corpo de seu filho morto era velado, em cujo sonho este filho o pega pelo braço e diz: “Pai, não vê que estou queimando?” (Freud, (1900)1976:543).

Para Freud este sonho é de fácil interpretação, pois o que desperta o pai é o clarão de luz que vem do quarto contíguo, onde as roupas de seu filho começam a se incendiar após a queda de uma vela sobre seu corpo. Em um paralelo com o sonho a que nos referimos no início deste trabalho, em que a realidade do sonho transborda para a vigília, tratar-se-ia, no sonho relatado por Freud, do movimento inverso, de invasão da realidade no sonho, provocando o despertar? Será isso que aproxima, pelo avesso, estes dois sonhos? Neste jogo entre sonho e realidade, que excesso seria esse que, como um resto, invade o sonhador?

Nos comentários que Freud tece acerca deste sonho, reafirma sua teoria da realização de desejo, dizendo que o conteúdo do sonho é sobredeterminado pelas relações entre pai e filho. Assinala, entretanto, que há algo de altamente emocional no apelo do filho ao pai – Pai, não vê? – do qual nada sabemos.

Este impossível de saber, presente na realidade trazida pelo sonho chama a atenção de Lacan quando se pergunta sobre o que desperta este pai. Será a realidade do clarão que lhe invade os olhos ou será a frase do filho que, como uma tocha, aponta para este impossível encontro entre um pai e seu filho morto? Mais além da realidade, o que o sonho evidencia é o real desse encontro faltoso, que só um sonho pode propiciar. Somente o sonho, como diz Lacan, “um rito, um ato sempre repetido, pode comemorar esse encontro imemorável – pois ninguém pode dizer o que seja a morte de um filho – senão o pai enquanto pai – isto é, nenhum ser consciente”. (Lacan, (1964)1973:.60). A importância que Freud dá a este curto sonho no contexto de sua teoria do desejo indica que o sonho não é apenas uma fantasia que preenche uma aspiração, mas, por traz da falta de representação, há um real traumático que comanda o desejo, que aparece no sonho sob a forma da perda de objeto. É ele que provoca o despertar.

O que essa análise pode ensinar sobre o sonho de Beatriz? Relatado em análise, este sonho evidencia uma urgência, algo a ser realizado que, similarmente ao sonho analisado por Freud, diz respeito à relação entre pais e filhos. Trata-se de uma missão que ela se atribui: arranjar pais para várias crianças, na tentativa de sanar uma falta, reconstituir um elo que se perdeu. A urgência que aparece no sonho é a mesma que a desperta e a faz chegar mais cedo à sessão, quando o hábito é atrasar-se. É isso que se impõe a ela como o real que transborda do sonho e que mostra sua estranha presença à medida que fala dele. Ao fim do relato, ao ser indagada pela analista sobre o que lhe vem à cabeça a propósito deste sonho, remete-se à situação traumática que a levou à análise, tantas vezes repetida, referida neste momento pelo significante abandono. Este significante surge de forma pregnante quando a falta se transforma em perda, na qual se vê implicada de duas formas: de um lado, algo lhe foi arrancado, o que a coloca na posição de objeto; de outro, a culpa através da qual reconhece a sua responsabilidade no ato de abandono a faz emergir como sujeito. Convocada pelo real do sonho, do qual não pode fugir, Beatriz se apresenta dividida pelo significante, significante da castração, ao contar este sonho em análise, endereçando-o ao analista.

Freud recomenda que tomemos tudo que o analisante diz a propósito do sonho, além do seu estrito relato – comentários, julgamentos, sentimentos – como fazendo parte do conteúdo latente do sonho, devendo ser, portanto, incluído na interpretação. Neste sonho, em que também se trata de uma realização de desejo, os comentários sobre a estranheza da sensação provocada por ele são, nesse sentido, partes do sonho. É esta sensação que faz retornar o trauma, na sua insistência repetitiva, ouvida naquilo que o sonho, ao mesmo tempo que recobriu, desvelou. A multiplicação numérica do objeto nos sonhos – neste aparecem várias crianças – indica, como também nos lembra Freud, a “repetição temporal de um ato” (Freud, op.cit: 398), através da qual a realidade do inconsciente se atualiza atravessada pelo real. Guardadas algumas diferenças, este sonho nos faz lembrar da 3ª. fase da fantasia de espancamento apresentada por Freud no texto “Bate-se em uma criança”(1919), onde se trata do sujeito enquanto indeterminado, ponto real em torno do qual se expande o inconsciente[1].

Se a transferência é a atualização da realidade do inconsciente, ela é essencialmente resistente, como indica esta experiência, ao evidenciar o movimento pulsátil do inconsciente, que mal se abre, se apressa em se fechar. À sessão que descrevemos seguiu-se, na sessão seguinte, um silêncio e apenas a frase – estou introspectiva, estou fugindo de meus pensamentos – seguida de sucessivas faltas às sessões subseqüentes.

A interrupção das associações do analisante e a falta às sessões são índices de resistência, já dizia Freud. Quando o analisante se cala, é provável que a interrupção de seu discurso se deva a algum pensamento relacionado ao analista. A noção de “presença do analista”, introduzida por Lacan para pensar esta questão, nos parece bastante oportuna, justamente quando ele enfatiza que se trata de “um fenômeno infinitamente mais puro” (Lacan, (1953-54)1975:52) do que as simples referências à presença física do analista ou ao imaginário que o cerca, ou mesmo a transferência para a sua pessoa de arquétipos infantis. Há algo de misterioso e enigmático nesta presença, que é da ordem do real. A presença do analista não pode ser separada do conceito de inconsciente – é ela própria uma manifestação do inconsciente – e aqui cito Lacan, “no movimento do sujeito que só se abre para tornar a se fechar, numa certa pulsação temporal – pulsação mais radical do que a inserção do significante que sem dúvida a motiva, mas que não lhe é primária ao nível da essência” (Lacan, (1964) 1973:121). Longe de enveredar por alguma tese essencialista do inconsciente e do sujeito, Lacan chama a atenção nesse momento para a presença do real, como aquilo que, fora da representação, causa o movimento do sujeito, provocando uma inflexão no discurso. A resistência, nesse sentido, longe de ser coerente com a idéia de que o inconsciente resume-se ao recalcado, apresenta-se de forma mais radical, como proveniente do real.

Ao ser relatado em análise o sonho tem um endereço certo: o analista. Um encontro ao qual somos chamados, encontro faltoso com um real que sempre escapa. O inconsciente é o evasivo e é nas repetições que tentamos cercá-lo. O sonho tem aí um papel fundamental, pois como um rito, um ato sempre repetido, é no seu texto que podemos seguir o caminho do sujeito em seu movimento de abertura e fechamento. Não cabe, portanto, ao analista interpretar o sonho, porque o inconsciente já procedeu por interpretação – o relato do sonho já é uma interpretação. A intervenção do analista deve partir disso.

No fragmento de caso que trouxemos, ao levar este sonho para análise, rompendo um circuito de repetições do mesmo, em que atrasos e faltas eram constantes, a analisante se viu ultrapassada por uma certa premência – die Not des Lebens[2] – a pressão, a urgência da vida, que evidencia o fracasso do princípio de realidade, mostrando sua precariedade. Ela sabe que se trata de um sonho, mas é o real que a desperta que traz para análise. Por que ela se cala nas sessões seguintes?

A hipótese que levantamos é de que o relato deste sonho comemora o encontro com o analista, encontro faltoso em que este se apresenta como testemunha de uma perda, “perda seca”[3], onde nada há mais a puxar, senão aguardar o movimento de pulsação do sujeito na retomada da palavra. O significante abandono se presentifica em ato na relação transferencial, nas faltas às sessões. No seu retorno, após um pequeno período de interrupção (duas semanas), refere-se à profunda tristeza em que esteve mergulhada, que a retirou do convívio social, dando notícias do início de um trabalho de luto, que ressignifica sua mudez e suas faltas. Como ela diz, é preciso saber perder. Com isso recomeça um trabalho de contorno simbólico da perda, anunciado por esta fala.
Ao analista resta sustentar pelo desejo do analista essa estranha presença – presença do analista – como testemunha irredutível de uma perda como diz Lacan, ou seja, como testemunha do inconsciente enquanto um campo que se perde. O trabalho que se realiza em análise, é trabalho do sujeito que emerge na fala do analisante, nas sucessivas voltas em que revisita o momento traumático que o funda como sujeito. É nesse caminho que ele pode tratar o real pelo simbólico ou, melhor dizendo, reinventar o real.

A experiência analítica, contudo, também convoca o analista ao trabalho, quando, diante do real da clínica, do indizível, do silêncio do analisante, sustenta uma abertura de espaço para que o sujeito possa retomar a palavra. O silêncio do analista se de um lado é indicativo do real – “alguma coisa em relação à qual o sujeito se choca”[4] – de outro, não é simplesmente mudez, mas silêncio fértil que porta a palavra falada. A partir do fragmento clínico que trouxemos, podemos pensar também o silêncio do analisante, proveniente do real, como via de possibilidade para uma nova circulação do discurso, nessa dobradura entre simbólico e real na qual se inscreve uma experiência de análise. Ao retomá-la num escrito, tornando-a pública, aquele que passou por esta experiência dá testemunho pela segunda vez, agora não mais da posição de analista, mas de sujeito, da tentativa de escrever o real que ela comporta. É diante desse real que temos o compromisso ético de não recuar, o que nos levou a buscar no escrito uma forma de desenhar a sua borda.

[1] No Seminário 11, diz Lacan: “…essa posição primária do inconsciente que se articula como constituído pela indeterminação do sujeito – é isto que a transferência nos dá acesso, de maneira enigmática.” (op.cit.:.124)
[2] Nos termos de Freud no Projeto para uma Psicologia Científica de 1895. Ver comentário de Lacan no Seminário 7(1959-60)1988:. 61/62. “ O principio de realidade funciona, de fato, como que isolando o sujeito da realidade”.
[3] Essa expressão é utilizada por Lacan no Seminário 11 (op.cit:.122).
[4] “O real é ou a totalidade ou o instante esvanecido. Na experiência analítica, para o sujeito, é sempre o choque com alguma coisa, por exemplo, com o silêncio do analista”. Lacan, (1953)2005:45

Referências Bibliográficas

FREUD, S. A Interpretação dos Sonhos (1900) Obras Psicológicas Completas, Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro, Imago, Ed., 1976.
LACAN, J. Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud (1953-54), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 1975.
Seminário 7, A ética da psicanálise, (1959-60), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 1988.
Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 1973.
“O simbólico, o imaginário e o real”(1953), in Nomes-do-Pai, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2005.

* Psicanalista, membro de Intersecção Psicanalítica do Brasil, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ.