PONTOS PARA DISCUSSÃO: O ENLACE ENTRE ANALISTAS: POR QUE E PARA QUE

À primeira parte desta pergunta – por que – poderíamos responder sugerindo as seguintes reflexões: 1 – Pelo horror que o analista experimenta ao se deparar com o real impossível da clínica, por sua solidão e seu isolamento, pelo confronto com o inconsciente que o desafia, porque “o analista raramente está a altura do ato que dele se espera”.

O que se espera do analista?
Lacan disse, em dado momento de seu ensino, que a idade de ouro da psicanálise já se passara e que o inconsciente empalidecera, não mais se manifestando com as cores de outrora. Esta é uma forte afirmação à qual M. Silvestre, já em 1987, respondeu não menos fortemente: “com efeito, se o inconsciente não se manifesta de modo semelhante, isto se deve aos psicanalistas que o escutam, que se revelam surdos a esse fato quando esperam sustentá-lo em sua prática. Sua surdez está na origem dos disfarces do inconsciente”.

2 – A história da psicanálise, por sua vez, tem mostrado que os enlaces entre analistas esbarram em inúmeras dificuldades. Entre elas, podemos destacar a burocratização da IPA e o culto aos mestres no movimento lacaniano.

Tudo isso tem levado as instituições lacanianas a freqüentes cisões, conflitos, fragmentações, ao seu enfraquecimento o que motivou o movimento da Convergência para fazer face a essa fragmentação. E. Roudinesco, por exemplo, aponta a crescente perda de prestígio das instituições lacanianas, sobretudo no que tange a prática clínica, a tal ponto que “inúmeros terapeutas já não procuram aderir a elas, ou, ao contrário, não hesitam em ser membros de duas (ou três) instituições ao mesmo tempo”. À constatação de que existe em todos os grupos psicanalíticos bons e maus praticantes, ela acrescenta que hoje em dia nenhuma sociedade detém o monopólio da boa clínica, uma vez que todas foram enfraquecidas pelo que denomina de esclerose institucional. Aqui vale lembrar a questão dos estudiosos da psicanálise. Sabe-se que Lacan estimulou o estudo sério da psicanálise. Mas, muitas vezes, ocorre que interessados em análise tomam a decisão egóica de praticar a psicanálise, decisão esta que é mais o efeito de um querer do que de um desejo. Isto leva a uma prática precária da análise.

3 – A crise da psicanálise no mundo não se deve apenas ao incremento de outras práticas – religião, esoterismo, farmacologia, terapias alternativas etc. – mas também ao nosso próprio isolamento e encastelamento. Nós analistas não soubemos acompanhar as mudanças do mundo contemporâneo, as questões que hoje nos são trazidas pelo inconsciente, através de um debate com outros saberes e permanecemos numa espécie de endogamia mortal.

4 – Decorre disso tudo a constatação de que nós analistas reproduzimos “a contento” o papel do homem moderno marcado pelos “especialismos”, alheio às questões socio-econômico-políticas dos novos tempos. Pensar hoje o enlace entre analistas acarreta uma série de desafios, quando passamos a refletir sobre a segunda parte de nossa pergunta: para que? O que visamos?

5 – De saída se apresenta o desafio de pensar, além da prática clínica tradicional, também a psicanálise em extensão, desde o início prevista e indicada por Freud e Lacan. Nesse campo, é importante refletir sobre a extensão social da psicanálise, através da sustentação do dispositivo analítico em outros espaços (hospitais, ambulatórios públicos) distintos do tradicional consultório particular.

A elitização da psicanálise não lhe trouxe nenhum benefício, seja na prática, seja na teoria – nesta última, basta lembrarmos a ilegibilidade de grande parte de seus textos, sobretudo os lacanianos.

6 – Para pensar o enlace entre analistas é necessário nos interrogarmos sobre o que se pretende em relação à sustentação do discurso psicanalítico e sua inserção no mundo. “Essa sustentação pode ter como lastro a possibilidade de acrescentar ao homem uma dimensão calcada no desconhecimento do que lhe causa. Saber e verdade instauram uma disjunção constitutiva de um sujeito emanado da linguagem, de onde surge como um significante que o representa para outro significante. Divisão fundante do sujeito, esta spaltung aponta, justamente, para o ponto de desconhecimento a partir do qual ele se constrói. Esta dimensão, acrescentada ao sujeito, humaniza o homem, no sentido de criar um lugar de onde possa situar-se em relação ao mundo. Golpe profundo no seu narcisismo e conseqüente possibilidade de recriação do mundo em torno do vazio que o acompanha desde sempre e para sempre. A constatação de que é um ser em falta, porque fala (Parlêtre) coloca-o diante da perspectiva de sua finitude, o que muda inteiramente a sua posição diante da existência. O discurso psicanalítico no mundo, poderia, portanto, operar transformações significativas, apontando para algumas saídas dos impasses em que se colocou o homem do terceiro milênio. Sobretudo se atentarmos para a prepotência e culto de valores perversos que advêm, seguramente, da relação do sujeito com a Lei. É este Homem-Deus que tudo pode, a partir das conquistas tecnológicas, das quais nem sequer percebe não poder dar conta, com o qual nos confrontamos, no início do terceiro milênio”.4

Outro interrogante decorre das lições da história que nos convidam a pensar como viabilizar isso através de uma política da psicanálise fundamentada no simbólico, que não se reduza ao jogo imaginário das lutas de prestígio e poder, mas que possa ser efetivamente exercida, sabendo-a uma prática impossível, isto é, onde o possível se dá no campo da contingência, no encontro sempre faltoso, levando-se em conta, portanto, a dimensão do real.

Ainda pensando em enlace, podemos nos remeter ao objeto a que enlaça os três registros: simbólico, imaginário e real. Fazer enlace é suportar a diferença (castração), fazer dela uma condição. Neste sentido, o que deveríamos ter em comum para nos enlaçar seria, exatamente, o enodamento do que nos diferencia, situação esta marcada pelo barramento do Outro, numa economia de desejo sustentada por uma transferência ao Outro do significante e não mais aos significantes do Outro. Portanto, pensar o enlace entre analistas encerra o descolamento do papel de fazer-se representação cabal de um Outro, concebendo-o como lugar que, em si, apenas ex-siste no modo como o desejo circula. O objeto a e o real do impossível do rapport sexual, assim se prestam como o que está em jogo na (im)possibilidade do enlace.

O Ideal de uma instituição que abarcaria a todos, fazendo Um só corpo ( o ideal de irmandade : “Façamos Um”, que vela o pacto com a morte ), está perdido. Lacan anunciou isto. Os seus efeitos foram vários e ainda ecoam…

Hoje nos reunimos à sombra de um passado recente de rupturas e a questão que se coloca é como conviver com esta impossibilidade, tomada enfim como verdadeira condição que insiste. O que fazer com o resto ? Emergem deste resto os “analistas não filiados às instituições escola”; será possível escutar o seu mal estar ou os ouvidos continuarão surdos? A opção será pela mesmice, que traz a ilusão de certas garantias, ou pela ousadia de pensar e construir o novo? Lembramos a necessidade e importância do debate sobre a participação em Convergência dos analistas não associados, questão, aliás, presente na Ata de fundação. 7 – Ressaltamos a importância da abrangência da Convergência, cuja abertura trata-se de favorecer. Precisamos buscar os meios para este favorecimento, quais as sugestões, as possibilidades? Certamente, entre outras coisas, deve ser evitado, daqui por diante, a promoção de uma reunião de estudos aberta para restringi-la, no dia seguinte, apenas aos participantes das instituições convocantes.

4 Referência de Lena Rodrigues.

Intersecção Psicanalítica do Brasil – Rio de Janeiro, Abril de 2000

*Texto redigido por Doris Rinaldi, Elza Caloba, Maria Eugenia Pondé e Miriam Nogueira Lima, com contribuições de Jacques Laberge, Andrea Echeverria, Lena Rodrigues, Arlete Mourão , Clarice Bacelar e Alba Riva Almeida, contando também com as interlocuções, críticas e sugestões dos demais membros de Intersecção Psicanalítica do Brasil.